domingo, 16 de setembro de 2007

para editar eros

não se pretende aqui esclarecer eros para que não nos escape como o fez quando psiquê o clareou a face; sabe-se da necessidade e do desejo de se estar em sua presença, ao menos percebê-lo [e quem sabe senti-lo em seu mistério!]. nesta edição, busca-se verbalizar e reverberar o fascínio do erotismo. mas qual é mesmo o sentido de tudo isto? para bataille o erotismo é a “parte problemática em nós”, e é por excelência, o problema pessoal e, ao mesmo tempo, o problema universal. para que se supere/ responda um problema é preciso de contestação, a transgressão pela linguagem - “que seríamos nós sem a linguagem? ela nos fez o que somos” [bataille] - e assim continuarmos indo em direção a algo; eros é o desejo e porventura gera movimento; todo ser humano é um ser desejante, constantemente sedento e quase sempre insatisfeito. é esta natureza íntima & impulsionadora que nos faz transgredir os limites de nosso próprio corpo e pensamentos; eis aqui, ao menos, o que pensamos/ concordamos [artigos; contos, poemas, imagens etc] pra que se edite eros sempre mais uma vez. são reflexões em torno do corpo [espaço do sagrado & do profano]; das ações que a escrita imerge & emerge por áreas de tensão contínua; das imagens mais cruas e sinceras que nossos desejos devem se aproximar; da beleza e sensibilidade que desabotoaram de anseios; da força que aproxima inexoravelmente poesia e o erotismo.nestas páginas é provável a presença de uma certa pornografia - a irmã siamesa do erotismo; que se entenda sem demais hipocrisias que “pornografia é o erotismo dos outros” [alain robbe], ou ainda, que “tudo que é erótico é essencialmente pornográfico, com alguma coisa a mais” [alexandrian]. ao final não é apenas o prazer que ambos possam evocar, mas a expressão que nos leva adiante, transgredir nossos próprios limites e as intervenções dos pensamentos/ costumes. mais do que um mito, encontra-se em eros a compleitude para nossa nostálgica ausência. é através do erotismo que se pode restaurar nossa unidade de ser e que há muito fora-nos separada pelos poder dos deuses.
editor plagium

a violação de eros e da escrita pela escrita

A obra de Donatien Alphonse François de Sade, ou simplesmente Marquês de Sade (1740-1814), é das mais idiossincráticas da literatura e que por suas peculiaridades estéticas, ideológicas e principalmente filosóficas faz-nos refletir sobre como certas manifestações ou fenômenos podem ter uma relação problemática com os sistemas vigentes, em vários níveis e aspectos. Entendo que obra de Sade é o corpo estranho dentro do sistema filosófico, estético, social, moral; ainda que de alguma forma comprometido com tal sistema, e nutrindo-se dele, exorciza-o e o contesta da forma mais radical. À filosofia Iluminista, da qual é em parte devedor e professador, subtrai seus anseios utópicos, construindo uma utopia do Mal. A moral cristã teísta é sistematicamente debochada e demolida nos mais escandalosos rituais de sacrilégio. E por fim, do ideal estético apolíneo neoclassicista, atrelado ao pensamento cientificista e racionalista, Sade aproveita para compor os mais tortuosos e dionisíacos quadros da bestialidade, da irracionalidade, do desregramento na literatura.Grande parte das obras da literatura libertina do século XVIII tinha um projeto não só estético como principalmente filosófico atrelado ao Iluminismo, projeto esse que tinha como objetivo desprender-se do obscurantismo religioso, que confinava o corpo a uma espécie de apêndice da alma, um terrível instrumento do pecado. O Esclarecimento (Iluminismo) no campo das idéias e a Libertinagem na área do comportamento e da cultura fundiram-se, através da literatura, a fim libertar o corpo e a mente da rígida moral cristã. Não à toa que um dos maiores alvos (senão o maior) da literatura libertina dessa época foi justamente a Igreja, ridicularizada nas figuras de lúgubres abades, padres, sacristãos e demais autoridades da igreja católica.E a libertinagem é, como sabemos, uma afronta à moral cristã, que paradoxalmente nutre-se de sua existência para se afirmar enquanto moral. A sedução, a sensualidade e o erotismo, que são as portas de entrada para os desregramentos da libertinagem, são igualmente combatidos pelo cristianismo, e mais exatamente por São Paulo, que teria sido “mais cristão que o próprio Cristo” e cujas idéias contidas nas suas epístolas no Novo Testamento bíblico são o fundamento principal do cristianismo católico. Podar o desejo em sua base, e se possível eliminar do corpo suas saliências, tornou-se o desejo atávico castrativo dos profetas cristãos, de São Paulo a Santo Agostinho. A sublimação da carne e das manifestações insidiosas da libido, eis uma das bases do catolicismo, que atinge o auge de seu poder justamente nos meados do século XVII.As manifestações contrárias a essa moral repressora existiram concomitante a ela, mas quase sempre foram sufocadas através das terríveis inquisições. Porém, freqüentemente, em especial na literatura, os ideais da Igreja foram de alguma forma combatidos nas suas próprias bases por alguns seus ilustres membros. Em pleno Renascimento, François Rabelais, um abade ilustrado, escreve Gargantua e Pantagruel, uma obra monumental carnavalesca, licenciosa, que funde o mais “baixo” grotesco ao mais elevado latinismo clássico. Outro abade, o Prevost, publica uma história, Manon Lescault, que prenuncia a literatura amoroso-sentimental, entremeada de erotismo velado que reinará na literatura do século XIX. Riso, grostequerie, amor erótico-carnal são componentes que vão estar presentes na literatura libertina dos meados do século XVIII.Muito devido a essa convivência agônica entre os ideais ascéticos da religião e os ideais libertários e iluministas perceptíveis na arte e na filosofia, a arte libertina desse período deslizava entre a tensão barroca e a suposta leveza neoclássica; entre o riso sardônico e cínico, e a dor e a agonia; entre o helenismo caricatural, e o titanismo daimônico ancestral; entre o racionalismo e a contensão iluminista, e o desregramento e a efusão romântica. As obras literárias desse período, quase todas, principalmente as maiores, foram movidas pelo signo da ambivalência, do paradoxo, do inclassificável. Em Fausto, de Goethe, há idealismo, sensualismo, subjetivismo românticos como também a busca da forma ideal, do Belo helênico, puro, aristocrático, superior, clássico. É dentro justamente desses aparentes paradoxos que se inscreve a obra do Marquês de Sade. Em suas obras, o pensamento exposto através dos diálogos dos personagens como Dolmancé (de A filosofia de Alcova) expressa a vitória do livre pensamento, numa lógica peculiar contra o obscurantismo da fé religiosa, mas penetra ela mesma no obscuro e assutador universo da Natureza Profunda, titânica, além de todo entendimento. À parte a clareza dos diálogos de Filosofia na alcova, é nas descrições das orgias que melhor se percebe um aparente paradoxo. Nos rituais orgiásticos havia rígidos códigos comportamentais, numa liturgia estranha, mas não de todo incompreensível. Em 120 dias de Sodoma, por exemplo, há vários parágrafos que correspondem a leis que deveriam ser seguidas pelos libertinos. Temos nesse trecho a descrição minuciosa do ambiente (o castelo onde se realizavam as orgias), o que os membros da sociedade deveriam fazer, as proibições expressas. Atentemos especialmente ao primeiro período desse trecho, em como há a preocupação da enumeração dos elementos presentes no harém e da simetria existente na composição do quadro: “Dois haréns são destinados aos membros da sociedade, e suas construções formam as duas alas da casa principal. Um deles é composto por trezentos jovens dos sete aos vinte e cinco anos; o outro por um número equivalente de cinco aos vinte e um anos” . Podemos notar nesses detalhes importantes, que não fogem à observação e descrição do narrador, o senso plástico de equilíbrio racional o qual, conforme Adorno, se assemelha ao “sistema arquitetônico kantiano” e “às primeiras lojas maçônicas” e que anunciam “uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado”. Tal cenário parece ser um contraponto ao desregramento sensual nos atos sexuais.Estes, por sua vez, são descritos minuciosamente, com os mais escabrosos detalhes, numa linguagem em que não são polpadas quaisquer atrocidades, gozos, diálogos, e cada palavra-frase e/ou ato, carregados de ironia, sarcasmo, êxtase, crueldade, lubricidade, não fogem à descrição do narrador. (Não à toa que Michel Foucault afirma que foi na literatura de Sade que a palavra atingiu poder de transparência e crueza.)Tomemos como um dos numerosos exemplos dessa linguagem inexoravelmente transparente um trecho de 120 de Sodoma em que é narrada a admissão de Juliette na Sociedade dos Libertinos. Num primeiro momento, Juliette transcreve, em forma de diálogos dramáticos, o “inquérito” a que foi submetida pela presidente da Sociedade, respondendo às perguntas concernentes às idéias dela, Juliette, sobre seus “excessos de libertinagem”, religião, filhos, o papel da mulher etc. Suas respostas agradam à assembléia presente. Esse solene ritual de iniciação não interrompe a orgia que se realiza dentro do salão. Depois desse inquérito, é-lhe ordenada a leitura de uma espécie de estatuto da Sociedade denominado “Instruções às mulheres na Sociedade dos Amigos do Crime”, com doze parágrafos. Depois de sua leitura, Juliette então é introduzida por um libertino na orgia que se desenrolava à sua frente. Atentemos para o seguinte trecho:
UM LIBERTINO (conduzindo Juliette a um canapé)Ah!... pelo jeito você deve ser uma grande puta! Agora não há como voltar atrás... Você é tão piranha quanto aliciadora... Deixou-me contente e de pau duro.E dizendo isso o sacana me enfia na xoxota. Ele me fode durante uns quinze minutos, beija muito a minha boca, e depois, agarrado por outra mulher, abandona-me sem esporrar. Uma velha de sessenta anos vem a mim, e deitando-me novamente no canapé que eu acabara de deixar, masturba-me e se faz masturbar durante um bom tempo (...) Uma jovem me tira também esse libertino; ele me deixa para fodê-la, para fodê-la diante de meus olhos. Minha rival me acena; aproximo-me dela e a puta chupa-me: recebe a porra do homem que me roubara, e lhe dou a minha (...) O libertino que vem depois, e que igualmente reconheci ser eclesiástico, me mete na boca e goza. Uma jovem belíssima se aproxima para que eu a masturbe, o que faço de todo o coração. Um homem de aproximadamente quarenta anos pega-a, de nádegas para o ar, e a enraba; o libertino em seguida me faz o mesmo(...)
Reparemos que na descrição dessa cena não há floreios, eufemismos, nem demais recursos retóricos. Reina a objetividade e um certo rigor na construção das frases, em que prevalecem os verbos que indicam ação, e a ausência quase total de adjetivos. Esse estilo dará o tom no resto da narração e descrição dessa cena. Curioso é o fato de que, como que em consonância a essa contenção de estilo da narrativa, no ambiente da assembléia, onde as mais diversas taras e atos depravados eram manifestados, reina uma ordem insuspeita, numa contraposição algo irônica entre libertinagem e ordem social. Essa linguagem direta tem a ver com algo que não podemos nos esquecer: a literatura pornográfica de Sade tinha fins essencialmente pedagógicos, como de resto praticamente toda a literatura libertina desse período. Mas em Sade esse intento parece bem mais evidente, em obras A Filosofia na Alcova. Daí por que atos e palavras deviam ser ilustrativos, exemplares, e com uma finalidade mais ou menos objetivada, mesmo no gozo, na possessão orgíaca, na efetivação de crimes hediondos. Assim como na própria escrita que oscila entre a descrição dos atos movidos pelas paixões mais desvairadas e pelo êxtase (como em vários trechos de A Filosofia na Alcova em que são descritos os intercursos sexuais em grupo entre Eugênia, Madame de Saint-Angé, o Cavaleiro, Domancé e Augustin) e a narrativa objetiva e relativamente contida como no trecho acima transcrito, ou ainda na transcrição dos diálogos em que são expostas as idéias do próprio autor na fala dos personagens. Essa escrita, em vista em parte por seu caráter pedagógico em parte por sua afinidade com o racionalismo iluminista, pelo menos em boa parte das obras, não se perde em idéias obscuras ou difusas, nem em sentimentalismos, nem em floreios retóricos desnecessários. Isso porque o Marquês usa da linguagem como instrumento da racionalidade; é o que Pierre Klossovski chama de “linguagem logicamente estruturada”. De uma clareza ofuscante, essa linguagem põe a nu o obscuro universo das perversões, do ultraje, das paixões contidas nos celerados, como forma de denunciar as profundezas titânicas da natureza, compactuar com elas, celebrá-las, subjugá-las por intemédio do corpo lacerado e vilipendiado do outro e da renúncia a Deus. Mas Sade com seu estilo seco e “documental” faz mais do que expor a perversão. Através de seus escritos, o Marquês, de certa forma, perverte a própria literatura, com sua linguagem que aparentemente não dá muita margem para as reentrâncias semânticas da linguagem poética, seus meios-tons, sua obscuridade plurissignificativa. Faz assim o uso da linguagem como a langue sussuriana, retomada por Jakobson, que compõe um sistema mais ou menos fechado e cuja finalidade é a comunicação. O autor abdica o estilo (parole) apropriando-se da linguagem instrumental, e de outros estilos ou formas literárias (o diálogo dramático, o romance campestre, o folhetim) para compor uma obra que por sua idiossincrasia estético-filosófica, torna-se um estilo Nomear, como sabemos, é parte indissociável do processo de desmitologização da linguagem, esta que fica cada vez mais a serviço do esclarecimento e da racionalidade. A linguagem clara tem a ver então, em Sade, com a racionalidade e com o projeto de construção de um sistema filosófico, como também com o desvelamento do erótico, que é violentado pela palavra, pelo pensamento, pelo ato obsceno. A aproximação entre Kant e Sade feita por Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento justifica-se pelo anseio de ambos os filósofos, cada um a seu modo, edificarem o edifício da ratio sobre os escombros do mito, que por sua vez se vinga daquela quando a mesma torna-se um mito. A dessacralização do mito, do amor, da religião feita por Sade nutre-se das próprias forças dos mesmos. No tocante, por exemplo, à visão crítica de Juliette, que tenta de todas as formas destranscendetalizar o ato sexual, Adorno afirma que essa crítica “é dividida como o próprio esclarecimento: Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais e que põr o gozo físico ao alcance de todos”. A destrancendentalidade do gozo, proporcionada pela ratio sadiana, bane por conseqüência o Eros, que ainda é aliciadopela literatura licenciosa do século XVIII para com ele combater o obscurantismo castrador medieval cristão. Eis a radicalidade da obra de Sade, que ousa desnudar o deus-cupido o qual sempre, em maior ou menor medida, esteve a serviço da literatura, tão potencialmente erotizável e erotizante, enfim sedutora. Como não podia deixar de ser, não tardou a vir a resposta contrária a esse acinte contra Eros, e em última instância contra a literatura. Anti-Justine, de Retif de la Bretonne, tenta deliciosa e desesperadamente — cupidamente — aproximar de novo Eros e linguagem. A fruição do gozo desprovido da expropiração do corpo do outro e eivado de jocosidade, joie de vivre, ludicidade é o contraponto explícito empreendido por La Bretonne à obra de Sade. O incesto, a sodomia, o gozo intermitente, as orgias, estão todos no Anti-Justine, mas agora sem a violação, a laceração, a vitupério e a morte infringidas ao corpo do outro: o prazer, de ambos os lados, impera nessa obra, como também uma escrita deleitável, jovial, com constantes jogos de palavras que atestam o caráter lúdico dessa literatura, como podemos perceber neste trecho:Como conseqüência, pedi que a minha filha deixasse que sua moita fosse barbeada. Ela escondeu o rosto em meu peito. Traçodeamor derrubou-a de imediato num fodedor, a cona totalmente descoberta.
Acho que afinal é uma pena! — disse ele manipulando-a; a peruca é magnífica! Primeiro eu vou cortar com tesoura: colocaremos esse pêlo sedoso sob um vidro numa moldura dourada, será uma relíquia preciosa.Ele cortou. Em seguida, tirou de uma bela caixinha um sabonete perfumado com o qual ensaboou a coninha por um tempo. Como a operação excitasse Conchette, ela pediu-me para colocar meus lábios sobre sua boca. Dardejou-me com a língua durante todo o tempo em que a operação durou e, quando acabou de ser barbeada, foi lavada com água de rosas. Secaram-lhe as coxas com toalhas macias, e Ternolírio colocou o belo pêlo dos despojos sob o vidro amoldurado. Depois, a coninha sem barba foi exibida para ser admirada. Todos, sobretudo as moças, até a modesta Ternolírio que, segundo ela, só viera para ver e enrubescia com tudo, acharam-na tão apetitosa que pediram para beijá-la, e as moças precipitaram-se sobre ela. A bonita chapeleira colocou seus lábios vermelhos na cona barbeada, e sua língua entrou na fenda para excitar a volúpia. Rosamalva, que acabara de chegar, partiu para cima dela como uma endemoniada, afugentou a outra e enlevou com tanto ânimo a deusa que ambas emitiram. Chegou a vez dos homens: surgiram o conote descarregante e fizeram-no descarregar ainda mais... Quanto a mim, admirava a cina, as mãos mergulhadas nas tetinhas de Ternolírio, encantadoras, que a proprietária não ousava defender.
A obra de La Bretonne, insere-se, como também a de Sade, no contexto de uma literatura produzida em uma determinada época, o século XVIII, a qual remonta, segundo Marcel Moreau, “à primeira idade da humanidade lúbrica. A transgressão nela é alegria da mesma forma que a adoração. O vício resplandece, feliz por ser o vício, e não se envergonha em não poder se impedir de o ser. A luxúria é o justo extravasamento, o privilégio do excesso oposto à degradação da moderação. Esse fanatismo do coito excita o surgimento de indivíduos superiores, sacralizados por sua intemperança mesmo, apenas extraviados dos colossos mitológicos”. Mas, por outro lado, Anti-Justine, opõe-se diametralmente à obra sadeana porque na primeira há um contrato tácito de compartilhamento do prazer, que vai desaguar no riso, na jovialidade e freqüentemente na ternura, ou ainda no amor (o subtítulo da mesma é Os prazeres do Amor). A lubricidade dessa escrita que promete a fruição do gozo e do prazer tem pouco a ver com a obra de Sade, toda ela cerrada na lógica que decanta a vitória da racionalidade sobre o mito e a religião através do desregramento, do sacrilégio, e mais: do gozo instrumentalizado que não permite o compartilhamento, o jogo erótico, a saciedade, o gozo apático.A literatura licenciosa que a obra de La Bretonne representa muito bem é uma ode a eros onde são vertidos, como incensos e mirras, sêmen, suor, gozo (esporro) masculino e feminino. Por isso a libertinagem encontrada nessa literatura desperta os sentidos, delicia, dá prazer sexual, sensual e intelectual. Dá aos corpos seus sentidos de liberdade, de concupiscência, de comunhão com a natureza e com o mundo, no sentido mais profundo. E isso é erotismo. Uma libertinagem que faz-nos deliciar com as palavras, com os corpos, com os pensamentos os mais variados possíveis, dos mais leves aos mais densos. O prazer do texto barthiano, aqui, tem mais de um sentido. Prazer encharcado de libertinagem, inclusive com certo ideal libertário.Já na literatura de Sade há uma libertinagem que se adentra nos profundos pântanos dos desejos mais obscuros e negros, e deixa marcas indeléveis nos seus praticantes-transgressores. Agressiva, chocante, crua, obscena, violenta, essa escrita que parece ser tão apolínea em sua estrutura, é talvez a mais dionisíaca da história da literatura.A libertinagem sadeana é transgressão e perversão levadas às últimas conseqüências. Se a literatura e a arte em sua essência afastam-se do sistema social e político quando autônomas por não terem compromisso em retratar a realidade, ou o fazerem de forma tortuosa (do que Platão nunca lhes perdoou...), e se por sua vez a literatura licenciosa representa essa rebelião contra as normas morais vingentes de maneira deliberada, sistemática e pedagógica, a obra de Sade então vem a ser o ato supremo de deboche não só contra a religião, a moral, a sociedade, mas em certa medida também contra a própria literatura, o Iluminismo, a linguagem, o bom gosto, o erótico, a lógica, ainda que, a seu modo destes elementos se utilize, numa dialética irônica peculiar.
por jônathas santana

a poética do desejo

O poeta inglês William Blake (1757-1827), “nunca saiu da Inglaterra, mas percorreu, como Swedenborg, os reinos dos mortos e dos anjos”. Sua poética traz como um dos princípios fundamentais a idéia de que não se deve separar o mundo da natureza e o mundo da espiritualidade, o corpo e o espírito, como queriam os pensadores pós-kantianos de sua época. Em seu livro “O Matrimônio do Céu e do Inferno” (1790-3), o poeta inglês afirma que os grandes erros da humanidade foram engendrados pela Bíblia e outros códigos sagrados, a partir do momento que se tentou diferenciar, absolutamente, os dois princípios do homem: o Corpo e a Alma. Segundo José Antonio Arantes, as idéias de Blake
misturadas a arquétipos valores espirituais e etapas do desenvolvimento do espírito -, se expressam em paradoxos, visando a subversão dos conceitos cristãos em nós arraigados, atraindo-nos para sua convicção de que a dicotomia (Bem=Alma=Céu; Mal=Corpo=Inferno) é causa da infelicidade humana. Apenas a integração dessas duas faces seria a fonte da felicidade plena.
Tal ruptura está expressa, por exemplo, nas cartas de Paulo aos Romanos (Cap.8; Vers.5-7), em que apóstolo enfatiza que “os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito, para as coisas do Espírito / Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz”. Já no poema “A Voz do Demônio”, de Blake, sua escritura enigmática desconstrói a hipótese de que toda a energia do “Mal, provém apenas do corpo”. Através de um jogo de contrários o eu poético acena para o que ele chama de “Verdade”, pois, “O Homem não tem um Corpo distinto de sua Alma, pois o que se denomina Corpo é uma parcela da Alma, discernida pelos cinco Sentidos, os principais acessos da Alma nesta etapa”; assim, a energia que provém do corpo não tem um caráter negativo, mas representa um “Deleite Eterno”. Esse embate entre o caráter apolíneo e o caráter dionisíaco, projeta-se com mais ênfase no poema “Provérbios do Inferno”, em que destaco a passagem, “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria / A Prudência é uma rica, feia velha donzela cortejada pela impotência / Aquele que deseja e não age engendra a peste”. Desnuda-se, desse modo, uma visão que percebe em tudo uma franca unidade; unidade essa que ressurge na poesia Beatnik de Allen Ginsberg, em que se lê: “O mundo é santo! A alma é santa! A pele é santa! O nariz é santo! A língua e o caralho e a mão e o cu são santos!”. Na poética de Blake, essa idéia de unidade é ressaltada no trecho: A vanglória do pavão é a glória de Deus. O cabritismo do bode é a bonda de Deus.A fúria do leão é a sabedoria de Deus.A nudez da mulher é a obra de Deus.
Pode-se entender esse princípio de unidade, a partir de um viés filosófico exposto com maestria pelo alemão Fichte, que explica que não há diferenciação entre o mundo dos fenômenos e o mundo das essências, já que tudo deriva de um único Eu puro. Essa poética da libertação explica-se pelo fato do Eu puro ser incondicionado e absoluto, infinito e ilimitado, “pois não conhece determinação”. Vê-se nesse ponto de vista uma filosofia monista em que, “tudo está em tudo”. Neste sentido, o verso “Aquele que deseja e não age engendra a peste” problematiza um dos maiores embates vividos pelo homem. Fichte, a partir de seu sistema filosófico que,
O pecado original do homem, a atitude antifilosófica por excelência, está na autolimitação ao finito, ao limitado do eu empírico, no tomar o mundo das representações como sendo a realidade última; o maior pecado do homem é o pecado contra a própria interioridade, a recusa do Absoluto e a conseqüente confinação ao Não-eu.
Tal afirmativa propõe a idéia de que para alcançar o Eu puro o homem tem que aceitar o pecado como obra e bondade de Deus, cessando assim o dualismo humano. Essa constatação reforça o ponto de vista do pensador alemão, quando ele afirma que “O eu é uma realidade essencialmente dinâmica, função pura, atividade infinita e ilimitada. Em decorrência, sendo infinita e ilimitada, não pode conhecer limites, fronteiras”. Neste sentido, o homem tem que transcender o seu olhar finito que o limita dentro de uma consciência individual. Nesse sentido, a consciência finita e empírica dohomem não pode ser o centro, mas precisa se abrir para um inconsciente, “produtora do mundo das representações da consciência empírica”.Através dessa ótica, “Todos os seres são produto da atividade pura do Eu. E essa atividade criadora do Eu livre Fichte dá o nome de imaginação criadora”.
por luiz guilherme

tributo ao michê

ATARANTADOS PELOS AUTOMÓVEIS, seus olhares são varados pelo néon, enquanto degustam cuidadosos cinismos e a pose debochada. Os arrobos de uma juventude bela, mas desvairada. Os balcões molhados pelo vácuo. As mariconas fustigam seus corpos com olhares sórdidos. Esses olhares serão culto durante a noite.Estes mesmos olhares da madrugada, olhados de forma sobrepostas... Avenida São João com Ipiranga; Avenida São Luiz, Largo do Arouche e seus jovens másculos de culturas frenéticas espalhando a beleza e o sexo e o delírio...Enquanto isso, sobre a frondosa (...) Praça da República, o poder acaricia e intumesce caralhos lânguidos como também aprende as poses sensuais dos gestos (...) com que deverá ornar seu corpo musculoso e vestido.Ao seu lado, seu companheiro de aventura, igualmente belo, igualmente louco, negocia sua boca de estátua grega com pederastas (...) beberam vários conhaques para encarar. Seus estômagos acostumados pela média preferem à corrosão e é exatamente fodidos que São Paulo gosta deles. E eles vêem o poder levemente maquiado. E eles vêem os policiais querendo tolir suas atividades. Eles vêem as bichas loucas evoluírem num frenesi, afetados por anfetaminas e maconha; elas exorcizam a noite com suas incríveis histórias de viagens a Paris, passeios inexistentes pela (...), querendo esnobar os rapazes e deixando a situação difícil, porque as mariconas odeiam, porque elas comprometem a noite. Vão pensar que viado é tudo igual e por isso que elas não são bem-vindas.Durante o início da noite há uma sex tarife. Logicamente que as primeiras serão as mais caras; as cobranças do meio serão para aqueles fregueses certos, pois são bem remunerados. Mas a madrugadas, quando nada acontece, o michê embarca no primeiro carro que pára ao seu lado. Logo mais em algum lugar ejaculará catarro e receberá um tributo por isso. Final da noite o michê e seu companheiro adentrarão no mesmo ônibus que vieram na noite anterior. Cansados, famintos e mortos de sono. Na alma, a certeza de que algo fora destroçado na sua virilidade. Nos corpos a marca do sexo. Mas no cotidiano, no presente, no momento, apesar da desdita, eles têm a certeza de que apesar de tudo, terão que voltar ao mesmo lugar na noite seguinte.
por eduardo peniche

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

poesia e erotismo

A intenção nesse artigo é fazer uma breve identificação entre poesia e erotismo. Começo logo por esse último. Para além apenas do desejo sexual, como é vulgarmente conhecido, ele tem sua raiz em um passado longínquo. Eros era uma figura mitológica da Grécia antiga, um dáimon, elemento intermediário entre os deuses e os homens, e que desnorteava a ambos com suas flechas ungidas com o desejo. Embora as narrativas sobre a sua origem variem, o significado comum que delas se pode depreender é que ele representava o “desejo incoercível dos sentidos (...), força fundamental do mundo”. Se Eros está na origem do cosmo, o erotismo enquanto fato da cultura está na origem do homem, que vai, por isso, se diferenciar do restante dos animais. Isso porque o erotismo ultrapassa e desvia o sexo de sua função primeira, a reprodução da espécie. Ele parte do físico, mas vai além dele, alcançando, assim, como já foi dito, a dimensão da cultura. O que leva à conclusão de que, enquanto o sexo é sempre o mesmo, com a mesma finalidade reprodutiva, o erotismo, por ser resultado da cultura, varia de sociedade para sociedade, e dentro das mesmas com passar dos anos, encontrando diferenças até mesmo entre diferentes grupos em uma mesma sociedade. Outra característica diferencial do sexo na espécie humana é que a mesma não tem sua atividade sexual dirigida por ciclos biológicos, pois o erotismo aí interfere diretamente, fazendo-o transformar-se numa atividade cujo fim é o prazer. Por consistir numa momentânea dissolução desse ser fechado na ordem do descontínuo, característica do indivíduo inserido na realidade cotidiana, o erotismo significa também uma recuperação da continuidade perdida, um desejo de retornar à ordem do eterno e infinito. Para operar essa dissolução do descontínuo, ele transgride as interdições que sustentam a realidade. Essa dissolução transgressora é marcada por uma liberação violenta do excesso de energia acumulada na ordem do trabalho. Decorre daí que todo erotismo é um ato de violência, que ameaça desorganizar a vida social. Chega-se aqui ao movimento fundamental do erotismo, pois, segundo Bataille, se o ser humano fez das interdições ferramentas da cultura, que o inseriu na descontinuidade da existência, juntamente com isso surgiu também o fascínio por superar tais barreiras, “derrubar uma barreira é em si algo sedutor; e até o proibido ganha um sentido que não possuía, antes que um terror, ao nos afastar dele, o revestisse com um halo de glória”. Esse ímpeto transgressor já traz uma primeira aproximação entre poesia e erotismo. Ambos são movimentados por um sentimento de falta, por isso a busca de quebrar os limites que lhes são impostos. Sendo, então, um fato da cultura, o erotismo vai também se relacionar com a linguagem e muito mais com a linguagem literária. Ainda no Banquete de Platão, o poeta é incluído nos que criam inspirados por Eros. Após introduzir estas notas preliminares sobre o erotismo, a partir daqui já PENETRO no objetivo inicialmente proposto.No que diz respeito à poesia, em nossa sociedade, sabe-se que o poder que se beneficia da estrutura social, para manter o status quo, busca controlar os discursos, deixando implícito que há a palavra autorizada e a “palavra proibida”. A poesia é, portanto, por excelência um campo de questionamento desse cerceamento da palavra, pela desconstrução que opera no uso convencional do código. A literatura representa um perigo para a ordem, pois opera um corte na linguagem. Já que é esta que organiza a realidade, desconstruí-la significaria mexer com a estabilidade do real como este é conhecido, aí estaria a importância do poeta, porque é ele que usa a linguagem para libertar o sujeito dos “grilhões das gramática”. Tanto no erotismo como na poesia há, então, o desejo de transgressão dos limites, com uma desorganização do cosmo para uma posterior reorganização do real. Tanto Eros como poiesis estão ligados à destruição e (re)criação cósmica. Quando a linguagem sai de seu uso cotidiano para adentrar no poético, ela se aproxima da esfera do erotismo, se configurando, então, ambos como um jogo. No uso poético da palavra, em vez de a linguagem acentuar a diferença entre o eu e o não-eu, ela funciona como quebra desse distanciamento, como bem afirma o poeta, “a poesia elide sujeito e objeto”. Essa elisão presente no jogo poético, segundo Bataille, também ocorre no jogo erótico. E o jogo se opõe à seriedade do trabalho e às finalidades ulteriores que caracterizam a vida social. Inserida no jogo do erotismo, a linguagem apresenta uma função lúdica de sedução, cujo único fim está em si mesmo. Nesta noção de jogo está o sentido etimológico de seduzir, se-ducere, que significa desviar do caminho. No jogo erótico, a linguagem busca desviar o Eu da sua consciência de sujeito inserido num tempo histórico, para arrastá-lo a uma nova realidade, transgressora da ordem produtiva, é a ordem da continuidade que suplanta a ordem da descontinuidade, fenômeno apontado no início deste artigo. Ambos, o jogo erótico e o jogo poético, negam a finalidade produtiva, que movimenta o mundo do trabalho ocidental. Para Huizinga, o campo da linguagem literária em que mais se realiza essa aproximação com dinâmica do jogo, presente também no erótico, é, de fato, o gênero lírico. Para ele, “o (gênero) lírico é o que permanece mais próximo da esfera lúdica da qual todos (os outros gêneros) derivam. (...) Na escala da linguagem poética, a expressão lírica é a mais longe da lógica e a mais próxima da música e da dança”. Esta aproximação com a música e a dança em poesia se dá, segundo Helena Parente Cunha, porque o gênero lírico, através de seus recursos, traz consigo uma identificação entre o Eu e o mundo. Para a autora, quanto menos possível for fazer a distinção entre esses dois, maior será o efeito lírico. Na poesia lírica tudo se tornaria tão anímico quanto o Eu, havendo uma momentânea (con)fusão entre este e o meio animado. Constrói-se nesse processo uma temporalidade ficcional circular encerrada em si mesma, que retira o leitor da temporalidade linear histórica. O texto poético faz, portanto, estabelecer-se uma nova relação de leitura com o verbo, em que as coisas são dadas não mais pela profundidade do conceitual, que utiliza a linguagem apenas como meio para a comunicação. Agora a informação a ser comunicada emaranha-se nas teias da linguagem de tal maneira que o leitor se vê enredado pelo jogo das palavras, não sendo possível mais substituir uma palavra do jogo poético, sem o prejuízo de afetá-lo ou mesmo desmontá-lo. O caráter prático da linguagem é substituído pelo seu contrário. Não é o fim mais o que importa, e sim o processo. Esta entrega do Eu ao fluxo da linguagem poética se inscreve naquilo que Baudrillard chamou de sedução do discurso. É a aparência que traz consigo um segredo que nunca se responde ou resolve racionalmente. A profundidade desse segredo se encontra na superfície, ou melhor, na própria mensagem.Esta conceituação de poesia lírica vai ao encontro daquilo que Bataille afirma ser o traço identificador entre poesia e erotismo: o questionamento de nossa finitude e de nossa consciência de descontinuidade ante a existência, para uma entrega a uma continuidade do ser que funde o sujeito ao objeto contemplado, quebrando-se, assim, a barreira entre o sujeito e o objeto e diluindo-se os dois num só ser. Para Nietzsche, não só a poesia lírica, mas toda manifestação artística que mereça esse nome deve possuir essa dinâmica.
Exigimos em todas as manifestações artísticas, em todos os graus de arte, se realize antes de mais nada a vitória sobre a subjetividade, libertação da tirania do “eu”, a abolição do desejo individual; porque, sem objetividade, sem contemplação desinteressada, nem sequer podemos acreditar que haja arte criadoramente artística, desde as máximas às ínfimas expressões”. Nietzsche tem em comum com Bataille o fato de acreditar que essa perda do Eu caracteriza um estágio superior do ser, manifestado pela aniquilação do indivíduo, em nome da embriaguez dos sentidos. No que diz respeito ao uso de recursos literários, a sugestão é outro traço em comum entre o erotismo e a linguagem poética. Existem metáforas cuja força do grau de sugestão diferenciada acentua e marca a sensualidade do corpo para ousar ir mais longe, chegar mais próximo ou mesmo transcender a fronteira da interdição em relação ao corpo. Sobre a sugestão afirma Barthes,
O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre?(que é o regime do prazer textual) (...) é a intermitência, como bem disse a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (a calça e a malha) (...) é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de aparecimento-desaparecimento.Esta tensão entre o revelado e o interdito gera o efeito da metáfora e gera também o erotismo. Barthes soube exprimir essa semelhança entre a sugestão do corpo e do texto, em que o processo do discurso seduzido seduz o imaginário. Mas essa linguagem nem sempre vale pelo que sugere, ao contrário, algumas vezes ela despe o texto poético de suas interdições para expo(rrá)-lo em toda a sua potência libidinal, com um tônus hiperbólico e agressivo, que buscam ROMPER com o cerceamento da palavra ligado ao cerceamento do corpo. Alguns se apressariam logo acusar essa produção de pornografia, mas se o pornográfico está ligado etimologicamente à prostituição, então não seria um contra-senso acusar essas obras de serem pornográficas, visto que elas, enquanto objetos artísticos que buscam a fruição estética, subvertem a lógica da venda do sexo, que percebemos presente na dinâmica do capital? Este corpo que se mostra na arte não é um corpo tão facilmente consumível, tampouco está nu, ao contrário, ele está vestido com a linguagem, que justamente o torna um signo poético desestabilizador do discurso autorizado e controlado sobre o corpo. Sua violência e agressividade eróticas servem para mostrar que quem está nu é o re(i)l. Através da poesia erótica é possível ler as marcas e fraturas históricas relacionadas ao cindido e esquizofrênico corpo social. Pode-se dizer, então, que esse erotismo possui várias matizes que vão do silêncio ou da fenda da metáfora à ruptura violenta com o eufemismo que represa a linguagem. Essa sexualidade presente nessa palavra poética “permite-nos denunciar as formas de vida em sociedade, 'as convenções do dia', como lhes chama Georges Bataille, (...) para proclamar 'a verdade da noite'”.

por clei de souza

o corpo - cristianismo como maternidade, sensualidade e piedade

Na história do mundo o corpo sempre foi um dos temas mais fascinantes da apreciação humana. Um exemplo está na história de Cristo, mas o curioso é que o cristianismo fará do corpo um paradoxo. Pois se tem uma narrativa densa onde o corpo tem fundamental importância (Cristo fará do seu corpo símbolo para memorização de sua história). Para Cristo sua concretização num corpo resultava do cumprimento da profecia, seu martírio e dor resultavam do sacrifício por um povo e sua ressurreição era resultado da vitória de sua missão e sua transladação resultava no renovo e esperança de um povo que sempre aguardou ansiosamente por uma nova sociedade vivendo também num novo espaço. Tornou-se um paradoxo porque se desenvolveu um discurso contra o corpo, a ponto de quase negá-lo. O corpo tornou-se um território de batalhas homéricas entre as tentações do diabo e separação recatada para garantia de salvação. É bem provável que esse recato do corpo não venha da cultura semita, visto que a fertilidade era conseqüência de benção. O certo é que devido o patriarcalismo dos povos vigente na época de Cristo, o corpo do homem foi privilegiado no ocidente. Mas silenciosamente o corpo feminino mostrou sua força. Durante os primeiros séculos, com a conversão de muitos judeus ao cristianismo, era lembrado os textos folclóricos e de costumes do povo hebreu como o Talmude, Zohar e Hadesch, onde se apresenta uma personagem por nome Lilith , a primeira companheira de Adão, que, no entanto, não quis se submeter numa relação em que o homem era superior, Lilith foge e se une a leviatã, ou Samael (Is. XVII, 1) as relações sexuais dessas duas entidades gerarão espíritos malignos, que vagarão durante a noite. Para os judeus cristãos era muito importante que se desse destaque a uma mulher livre da mácula mitológica judaica do sexo (A virgindade de Maria pode ter tido ênfase no ocidente conforme esses textos rabínicos.). Entre os leitores mais influentes dos 4 evangelhos (Mateus, Marco, Lucas e João) temos Paulo de Tarso (003 066) um dos mais privilegiados pois tem suas reflexões e recomendações, principalmente suas epístolas publicada no bojo dos textos selecionados para a 2ª parte da Bíblia, o Novo Testamento. Paulo recomendará que se fosse possível o homem (ou a mulher) evitassem o casamento. São Jerônimo de Strídon (340 420), o tradutor da Bíblia para a Vulgata Latina, deixa reflexões teológicas sobre a virgindade como pureza, fala do casamento e filhos como martírios. Santo Agostinho (354 430) se destaca entre os escolásticos, e como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de Aristóteles, Agostinho é Considerado o maior vulto da filosofia metafísica cristã, relaciona a sensualidade ao pecado original (em sua obra magma Cidade de Deus).A Bíblia menciona seis Marias no Novo Testamento, das quais três são de interesse para os pesquisadores, sobretudo da história da sexualidade. O Papa Gregório I, O Grande, no século VI expressou que as Marias poderiam ser uma complexidade de se pensar a mulher no contexto social da época (Dicionário da Vida Sexual p 347). Poderia se dizer que essa mulher trina figure aspectos complexos de um povo (grego e latino) que vivencia uma confluência de várias matrizes culturais. Três imagens tornam-se muito freqüente num inconsciente ocidental: a imagem materna com suas suculentas mamas a esparramar o leite no caminho do ser humano, a via-láctea. Para os gregos a deusa-mãe Deméter, a importante canção da fecundidade e prosperidade, atos significativos principalmente para aldeões que viviam da lavoura. As religiões do mundo têm talvez, explicado como produto do que Jung chamou de inconsciente coletivo a tendência de reverenciar a fêmea, uma deusa-mãe associada quase sempre ao sol, à lua e a terra, isso tudo porque esses elementos são fundamentais para a agricultura e vegetação. A Maria Mãe: a noiva de José que se permite cumprir em si a profecia da encarnação da palavra (verbo). E gerar um ser humano prescindindo de duas ações naturais: a relação sexual e o rompimento do hímem (Mateus 1: 29 25). Segue-se especulações se depois Maria teve uma vida normal ou não, o certo é que a Igreja ao longo dos séculos foi instituindo dogmas: A Maria Madalena Vênus: (Madalena por morar em Madala, ou Magdala, lugares de localização incerta) Ela é figurada como a prostituta arrependida que ungiu os pés de Cristo na casa do fariseu (Lucas 7: 36 - 50). Ela esteve presente no martírio do corpo de Crito, juntamente com Maria Mãe, e outras mulheres. (Mateus 27:56; Marcos 15:40; Lucas 23:49; João 19.25) e no funeral. (Mateus 27:61; Marcos 15.47; Lucas 23:55). Depois ela volta do Calvário para Jerusalém para comprar e preparar certos perfumes, a fim de poder preparar o corpo de Jesus como era costume funerário, quando o dia de Sábado tivesse passado. Ela passou todo o dia de Sábado na cidade - e no dia seguinte, de manhã muito cedo "quando ainda estava escuro", indo ao sepulcro, achou-o vazio, e recebeu de um anjo a notícia de que Jesus Nazareno tinha ressuscitado e devia informar disso aos apóstolos. (Mateus 28:1-10; Marcos 16:1-5,10,11; Lucas 24:1-10; João 20:1,2; compare com João 20:11-18). Existe um desejo olfativo, visual, tátil, sonoro muito forte nesse personagem; Ela foi a primeira testemunha ocular de Jesus Ressuscitado. Talvez por isso se explique muitas especulações sobre sua história, escritores como: Henry Lincoln, Michael Baigent e Richard Leigh, autores do livro que em português se intitulou O Sangue de Cristo e o Santo Graal (1982), e Dan Brown no romance O Código da Vinci (2003), estão aí para instigarem a sexualidade de Maria e Jesus.A Maria Betânia - Pietá: (irmã de Marta e de Lázaro, o homem que Jesus ressuscitou) Essa Maria possui uma das cenas mais sensuais da Bíblia; o momento em que ela pega o frasco de alabastro que continha um caríssimo ungüento de nardo, ungiu com ele os pés de Jesus e os enxugou com os próprios cabelos. A unção do corpo com perfumes raros é muito simbólico para os povos antigos, tem uma força de imortalidade. Sabe-se que houve na casa dessa Maria a ressurreição de Lázaro (morto já alguns dias), e tem uma das raras cenas registrada em que Cristo chora. Fertilidade, prazer da carne e dor talvez sejam caminhos quase inevitáveis para humanidade há alguns que tentam evitar, mas é bem verdade que nos formamos dentro dessa complexidade. Refazer e reconstruir caminhos passa pela experiência dessa complexidade com a carne (corpo). Deixa-se uma obra, Bob e Brenda, do americano William Crozier, uma escultura quase em tamanho natural, do corpo de homem e do corpo da mulher. Um representando a força horizontal e outro representando a força vertical, a sábia combinação e interação que afugenta todos os diabos (aquilo que divide) do corpo. Ambos se vêem, podem desejar-se ou não, podem fecundar-se ou não. Mas ambos sabem que possuem a força da vida.

por ilton ribeiro

um erotismo desabotoado

O EROSTISMO PODE-SE AFIRMAR EXPLICITAMENTE que nem sempre foi uma tônica masculina, mas que apenas tardiamente teria erigido, ou melhor, aflorado sob o olhar da escrita feminina. Sempre marcada de um ostracismo no universo literário, as mulheres sobreviveram aos suspiros, reservadas em silenciamentos de seus prazeres. A escrita considerada por alguns críticos sexistas de “feminina” [e não confundir com feminista!!], e que não é a discussão deste artigo, registrou-se em seus espaços de solidão & silêncio. E quando se põe à mesa o erotismo, elas comportam-se com uma sedução lenta até que gradativamente cheguem a um orgasmo.Ainda que Psapho [ou simplesmente Safo] venha a ser considerada a primeira poetisa erótica da antiguidade, é preciso que se entenda que sua escrita manteve-se nos limites do “bom-tom”. Safo tinha mais erotismo latente em seu modo de vida [assim também se revelariam outras tantas literatas ao longo da história do erotismo] do que em seus poemas amorosos. Aliás foi este sentimento amoroso que atravessaria séculos [“durante a Idade Média conheceu-se o peso do pecado e com frequência viveu-se em temor e tremor”, Maurice Gandillac] até chegar a Renascença ainda celebrando um amor platônico nos escritos de algumas cortesãs que no máximo souberam magnificar o amor enquanto sentimento. A exceção foi Louise Labé [Débat de folie et d´amour, 1955], por sua ousadia em confessar sua sensualidade, esboçando mesmo um erotismo que aproxima o amor da loucura. Mas ainda assim o esforço de outras tantas literatas & libertinas, e mesmo algumas mulheres [Claudine de Teci, Mme. Souza, Céleste Mogador] que pertenceram ao Romantismo [movimento que tanto reinvidicou o direito a liberdade e a paixão] não trouxeram nenhum acréscimo à literatura erótica.Somente no final no final do século XIX é que se apresentariam as primícias de um erotismo mais significativo no cenário literário: H. Le Blanc [Marquesa de Mannoury] publica “Memoires secrets d´un tailleur pour dames”, em 1880 - relatos de histórias colhidas a partir dos ambientes de salões & cervejarias. São também notáveis os nomes [em meio a um grupo de lésbicas com pretensões literárias, mas que mal arrancaram poucos suspiros], Rachilde, Colette e Renée Dunan. Esta última por publicar clandestinamente um romance pornográfico e de um humor erótico sem igual [Les caprices du sexe, 1928]. Pela primeira vez a república [literária] dos homens fora ameaçada por um erotismo marcado por uma força e uma crueza de uma mulher [tudo bem que tenha se escondido atrás de um outro nome - Louise Dormienne - mas ainda assim era uma “femme”. A personagem principal [Louise], por ter se lançado à prostituição, “atravessa as situações mais obscenas que Renée Dunan descreve num estilo forte mas não vulgar, com observações muito justas de psicologia sexual” [Alexandrian, HISTÓRIA DA LITERATURA ERÓTICA, 1994]Renée Dunan ainda escreve um romance que causaria uma ameaça a ordem estabelecida [Une heure de désir, 1929] e por esta ousadia seu livro - na realidade um relato do que ocorre num primeiro encontro de um casal num quarto - fora posto no INFERNO DA BIBLIOTECA NACIONAL. Renée Dunan faz uma análise sutil das sensações & reações deste casal. Tendo publicado quase cinquenta livros, ao longo de sua vida, pouco se encontra sobre a autora. Seu nome quase não consta em antologias, compêndios e dicionários que abordam sobre este estilo literário [até mesmo na rede de informações mundialmente pesquisada: www]. Renée Dunan teve um qualidade rara de se encontrar numa escritora: um humor erótico cheio de reflexões maliciosas. Eis o preço a pagar por escrever [sendo uma mulher] tão francamente sobre sexo/sexualidade: o ostracismo.Por erotismo ter que haver com transgressão [Georges Bataille, L’ EROTISME, 1957], uma maneira de superar as interdições de quaisquer aspectos culturais [e mesmo natural!!], é que a partir de alguns momentos das relações sociais as mulheres começam a modificar a cena literária do erotismo com seu olhar em direção ao prazer. Sua presença na literatura erótica ainda não acrescenta um novo gênero, não são obras-primas que porventura tenham inaugurado/criado uma nova escrita em torno do erotismo [como desejam alguns sexistas!!], mas há uma nova tônica de seu olhar erotizante; com novas obras publicadas por elas há a possibilidade de se enrijecer mais do que o cânone; certamente há provocação & excitação de um cenário estético. Prazerosamente duas outras escritoras podem/ devem ser introduzidas neste seleto gênero da literatura erótica: Joyce Mansour e Anais Nin; herdeira do Surrealismo [que tanto estimulava uma arte desprendida de racionalidade/ lógica, buscando antes a escrita automática, dos sonhos e morbidez], Joyce Mansour revelou-nos poemas de um toque entre as forças de Eros e Thanatos. A violência de seus versos e confissões lésbicas desorientava leitores de uma Belle Epoque hipócrita [bem ao estilo água-com-açúcar!]. No lugar da pureza leva-nos a invocação de coisas/valores inusitados:
Eu amo tuas meias que reforçam tuas coxasAmo teu corpete que sustenta teu corpo trêmuloTuas rugas teus seios pendentes teu ar esfomeadoTua velhice contra meu corpo tensoTua vergonha diante de meus olhos que sabem tudoTeus vestidos que cheiram a teu corpo apodrecidoTudo isso me vinga enfimDos homens que não me aceitaram. [in CRIS, Paris, Seghers, 1954]
Por toda a sua vida as confissões mais íntimas de Anaïs Nin [suas aventuras amorosas, seus anseios, sua atitude libertina e acima de tudo sua promiscuidade sexual] foram compiladas nas páginas de seus Diários. E o ímpeto desses escritos, inevitavelmente, iria erigir de tal forma que alcançariam as páginas de seus melhores contos/ romances eróticos. Pode-se dizer que o segredo de sua obra literária está em seus Diários [espaço de refúgio & criação, uma viagem interior por áreas erógenas da sexualidade]. Seus escritos revelam a intimidade dos sonhos e angústias das mulheres, uma luta pelos seus desejos mais interiores, representados em forma de auto-análise psicanalítica; lembre-se que Anaïs tivera a influência das teorias de Freud, e essa influência ficou latente em duas de suas obras: VÊNUS ERÓTICA e A CASA DE INCESTO; esta última escrita em estilo surrealista e simbólico, inspirados em estudos freudianos; na verdade um longo poema em prosa que joga com o próprio inconsciente da autora; sua personagem Sabina, anagrama de “anaïs B”, um ser abstrato [o Superego de Anaïs] é a mulher ideal, enquanto Jeanne [o seu Id], uma mulher enferma e complexada. Neste romance pode-se ver expresso, de certa forma, um narcisismo de Anaïs Nin [Sabina] assim como seu complexo de Eletra [Jeanne]. Ao final desta narrativa Jeanne conduz Sabina até a Casa do Incesto, “onde jaz um velho pintor paralítico diante de quem uma dançarina espanhola executa a ‘dança da mulher sem braços’. Esta cena angustiante, que termina a narrativa, incita a narradora a pensar que é preciso escapar da ‘casa do incesto’ onde cada um não faz senão amar a si mesmo num outro” [ALEXANDRIAN].É também desta escritora a proposição de uma “escrita feminina”, excitando idéias libertárias sobre o universo da mulher e sobre o sexo, o erotismo em Anaïs Nin — diferente de outros autores que publicaram uma ou outra obra erótica — é uma constante [quase uma obscessão diária!]. Ela concentrou todo um trabalho no universo erótico, fazendo mesmo com que se perca uma naturalidade [do sexo]. Anaïs sempre se moveu, por assim dizer, em busca do Eros. Tendo começado a escrever muito cedo em seus Diários [Journal], reflexo de sua luta constante contra a realidade, sua primeira obra publicada data de 1932; trata-se de um ensaio sobre o escritor inglês D.H Lawrence [no mínimo, isso já representava uma ousadia de sua parte, dada a reputação deste escritor na europa]. Diferente de Sade ou de Henry Miller [em que se encontram as marcas de um erotismo selvático e perverso ou o obsceno e grosseiro] em Anaïs Nin tem-se a sensibilidade por imagens ricas em mistério e metáforas, como em VÊNUS ERÓTICA, onde se percebe a presença onírica de uma mulher sobre o amor físico. Mesmo em narrativas perversas Anaïs mantém sempre o senso da beleza carnal [e uma certa elegância moral!]Além de Diários e Ficções, ela também escreveu críticas e ensaios [prefaciou “Trópico de Câncer” de Henry Miller], de forma que seu estilo excitou e influenciou outras autoras no exercício do erotismo. Soube como os grandes autores expressar sua interioridade não apenas como é na realidade assim como são seus desejos libertos & libertinos, fora das conveniências e inibições sociais.Com Louise Labé, Renée Dunan, Joyce Mansour, Anaïs Nin e tantas outras, o erotismo desabotoa-se, expande-se, ultrapassa-se estetica e prazerosamente [o cio alcansa o céu, espaço reservado às estrelas e não apenas ao fogo violento dos meteoros!]. Fora uma conquista vali0sa que elas obtiveram no campo literário, podendo desta forma expressar seus anseios eróticos, correspondentes às falas que seus corpos tanto tensionaram [por muito tempo aprisionados em espartilhos da própria cultura]. Elas desabotoaram suas sexualidades [lésbicas, feministas, femininas etc] onde a literatura tende sempre a saciar: no imaginário, e a interioridade de seus textos dizem [e não dizem!] daquilo que é um mistério ou um segredo ou o sagrado: o erotismo.

por benoni araujo