segunda-feira, 10 de setembro de 2007

poesia e erotismo

A intenção nesse artigo é fazer uma breve identificação entre poesia e erotismo. Começo logo por esse último. Para além apenas do desejo sexual, como é vulgarmente conhecido, ele tem sua raiz em um passado longínquo. Eros era uma figura mitológica da Grécia antiga, um dáimon, elemento intermediário entre os deuses e os homens, e que desnorteava a ambos com suas flechas ungidas com o desejo. Embora as narrativas sobre a sua origem variem, o significado comum que delas se pode depreender é que ele representava o “desejo incoercível dos sentidos (...), força fundamental do mundo”. Se Eros está na origem do cosmo, o erotismo enquanto fato da cultura está na origem do homem, que vai, por isso, se diferenciar do restante dos animais. Isso porque o erotismo ultrapassa e desvia o sexo de sua função primeira, a reprodução da espécie. Ele parte do físico, mas vai além dele, alcançando, assim, como já foi dito, a dimensão da cultura. O que leva à conclusão de que, enquanto o sexo é sempre o mesmo, com a mesma finalidade reprodutiva, o erotismo, por ser resultado da cultura, varia de sociedade para sociedade, e dentro das mesmas com passar dos anos, encontrando diferenças até mesmo entre diferentes grupos em uma mesma sociedade. Outra característica diferencial do sexo na espécie humana é que a mesma não tem sua atividade sexual dirigida por ciclos biológicos, pois o erotismo aí interfere diretamente, fazendo-o transformar-se numa atividade cujo fim é o prazer. Por consistir numa momentânea dissolução desse ser fechado na ordem do descontínuo, característica do indivíduo inserido na realidade cotidiana, o erotismo significa também uma recuperação da continuidade perdida, um desejo de retornar à ordem do eterno e infinito. Para operar essa dissolução do descontínuo, ele transgride as interdições que sustentam a realidade. Essa dissolução transgressora é marcada por uma liberação violenta do excesso de energia acumulada na ordem do trabalho. Decorre daí que todo erotismo é um ato de violência, que ameaça desorganizar a vida social. Chega-se aqui ao movimento fundamental do erotismo, pois, segundo Bataille, se o ser humano fez das interdições ferramentas da cultura, que o inseriu na descontinuidade da existência, juntamente com isso surgiu também o fascínio por superar tais barreiras, “derrubar uma barreira é em si algo sedutor; e até o proibido ganha um sentido que não possuía, antes que um terror, ao nos afastar dele, o revestisse com um halo de glória”. Esse ímpeto transgressor já traz uma primeira aproximação entre poesia e erotismo. Ambos são movimentados por um sentimento de falta, por isso a busca de quebrar os limites que lhes são impostos. Sendo, então, um fato da cultura, o erotismo vai também se relacionar com a linguagem e muito mais com a linguagem literária. Ainda no Banquete de Platão, o poeta é incluído nos que criam inspirados por Eros. Após introduzir estas notas preliminares sobre o erotismo, a partir daqui já PENETRO no objetivo inicialmente proposto.No que diz respeito à poesia, em nossa sociedade, sabe-se que o poder que se beneficia da estrutura social, para manter o status quo, busca controlar os discursos, deixando implícito que há a palavra autorizada e a “palavra proibida”. A poesia é, portanto, por excelência um campo de questionamento desse cerceamento da palavra, pela desconstrução que opera no uso convencional do código. A literatura representa um perigo para a ordem, pois opera um corte na linguagem. Já que é esta que organiza a realidade, desconstruí-la significaria mexer com a estabilidade do real como este é conhecido, aí estaria a importância do poeta, porque é ele que usa a linguagem para libertar o sujeito dos “grilhões das gramática”. Tanto no erotismo como na poesia há, então, o desejo de transgressão dos limites, com uma desorganização do cosmo para uma posterior reorganização do real. Tanto Eros como poiesis estão ligados à destruição e (re)criação cósmica. Quando a linguagem sai de seu uso cotidiano para adentrar no poético, ela se aproxima da esfera do erotismo, se configurando, então, ambos como um jogo. No uso poético da palavra, em vez de a linguagem acentuar a diferença entre o eu e o não-eu, ela funciona como quebra desse distanciamento, como bem afirma o poeta, “a poesia elide sujeito e objeto”. Essa elisão presente no jogo poético, segundo Bataille, também ocorre no jogo erótico. E o jogo se opõe à seriedade do trabalho e às finalidades ulteriores que caracterizam a vida social. Inserida no jogo do erotismo, a linguagem apresenta uma função lúdica de sedução, cujo único fim está em si mesmo. Nesta noção de jogo está o sentido etimológico de seduzir, se-ducere, que significa desviar do caminho. No jogo erótico, a linguagem busca desviar o Eu da sua consciência de sujeito inserido num tempo histórico, para arrastá-lo a uma nova realidade, transgressora da ordem produtiva, é a ordem da continuidade que suplanta a ordem da descontinuidade, fenômeno apontado no início deste artigo. Ambos, o jogo erótico e o jogo poético, negam a finalidade produtiva, que movimenta o mundo do trabalho ocidental. Para Huizinga, o campo da linguagem literária em que mais se realiza essa aproximação com dinâmica do jogo, presente também no erótico, é, de fato, o gênero lírico. Para ele, “o (gênero) lírico é o que permanece mais próximo da esfera lúdica da qual todos (os outros gêneros) derivam. (...) Na escala da linguagem poética, a expressão lírica é a mais longe da lógica e a mais próxima da música e da dança”. Esta aproximação com a música e a dança em poesia se dá, segundo Helena Parente Cunha, porque o gênero lírico, através de seus recursos, traz consigo uma identificação entre o Eu e o mundo. Para a autora, quanto menos possível for fazer a distinção entre esses dois, maior será o efeito lírico. Na poesia lírica tudo se tornaria tão anímico quanto o Eu, havendo uma momentânea (con)fusão entre este e o meio animado. Constrói-se nesse processo uma temporalidade ficcional circular encerrada em si mesma, que retira o leitor da temporalidade linear histórica. O texto poético faz, portanto, estabelecer-se uma nova relação de leitura com o verbo, em que as coisas são dadas não mais pela profundidade do conceitual, que utiliza a linguagem apenas como meio para a comunicação. Agora a informação a ser comunicada emaranha-se nas teias da linguagem de tal maneira que o leitor se vê enredado pelo jogo das palavras, não sendo possível mais substituir uma palavra do jogo poético, sem o prejuízo de afetá-lo ou mesmo desmontá-lo. O caráter prático da linguagem é substituído pelo seu contrário. Não é o fim mais o que importa, e sim o processo. Esta entrega do Eu ao fluxo da linguagem poética se inscreve naquilo que Baudrillard chamou de sedução do discurso. É a aparência que traz consigo um segredo que nunca se responde ou resolve racionalmente. A profundidade desse segredo se encontra na superfície, ou melhor, na própria mensagem.Esta conceituação de poesia lírica vai ao encontro daquilo que Bataille afirma ser o traço identificador entre poesia e erotismo: o questionamento de nossa finitude e de nossa consciência de descontinuidade ante a existência, para uma entrega a uma continuidade do ser que funde o sujeito ao objeto contemplado, quebrando-se, assim, a barreira entre o sujeito e o objeto e diluindo-se os dois num só ser. Para Nietzsche, não só a poesia lírica, mas toda manifestação artística que mereça esse nome deve possuir essa dinâmica.
Exigimos em todas as manifestações artísticas, em todos os graus de arte, se realize antes de mais nada a vitória sobre a subjetividade, libertação da tirania do “eu”, a abolição do desejo individual; porque, sem objetividade, sem contemplação desinteressada, nem sequer podemos acreditar que haja arte criadoramente artística, desde as máximas às ínfimas expressões”. Nietzsche tem em comum com Bataille o fato de acreditar que essa perda do Eu caracteriza um estágio superior do ser, manifestado pela aniquilação do indivíduo, em nome da embriaguez dos sentidos. No que diz respeito ao uso de recursos literários, a sugestão é outro traço em comum entre o erotismo e a linguagem poética. Existem metáforas cuja força do grau de sugestão diferenciada acentua e marca a sensualidade do corpo para ousar ir mais longe, chegar mais próximo ou mesmo transcender a fronteira da interdição em relação ao corpo. Sobre a sugestão afirma Barthes,
O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre?(que é o regime do prazer textual) (...) é a intermitência, como bem disse a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (a calça e a malha) (...) é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de aparecimento-desaparecimento.Esta tensão entre o revelado e o interdito gera o efeito da metáfora e gera também o erotismo. Barthes soube exprimir essa semelhança entre a sugestão do corpo e do texto, em que o processo do discurso seduzido seduz o imaginário. Mas essa linguagem nem sempre vale pelo que sugere, ao contrário, algumas vezes ela despe o texto poético de suas interdições para expo(rrá)-lo em toda a sua potência libidinal, com um tônus hiperbólico e agressivo, que buscam ROMPER com o cerceamento da palavra ligado ao cerceamento do corpo. Alguns se apressariam logo acusar essa produção de pornografia, mas se o pornográfico está ligado etimologicamente à prostituição, então não seria um contra-senso acusar essas obras de serem pornográficas, visto que elas, enquanto objetos artísticos que buscam a fruição estética, subvertem a lógica da venda do sexo, que percebemos presente na dinâmica do capital? Este corpo que se mostra na arte não é um corpo tão facilmente consumível, tampouco está nu, ao contrário, ele está vestido com a linguagem, que justamente o torna um signo poético desestabilizador do discurso autorizado e controlado sobre o corpo. Sua violência e agressividade eróticas servem para mostrar que quem está nu é o re(i)l. Através da poesia erótica é possível ler as marcas e fraturas históricas relacionadas ao cindido e esquizofrênico corpo social. Pode-se dizer, então, que esse erotismo possui várias matizes que vão do silêncio ou da fenda da metáfora à ruptura violenta com o eufemismo que represa a linguagem. Essa sexualidade presente nessa palavra poética “permite-nos denunciar as formas de vida em sociedade, 'as convenções do dia', como lhes chama Georges Bataille, (...) para proclamar 'a verdade da noite'”.

por clei de souza

Um comentário:

Unknown disse...

esse artigo é perfeito. Realmente a sociedade tem que refletir a finalidade do erotismo, pois a beleza e excentricidade do erótico está no jogo das palavras, no toque e até mesmo no pensar.