domingo, 16 de setembro de 2007

a violação de eros e da escrita pela escrita

A obra de Donatien Alphonse François de Sade, ou simplesmente Marquês de Sade (1740-1814), é das mais idiossincráticas da literatura e que por suas peculiaridades estéticas, ideológicas e principalmente filosóficas faz-nos refletir sobre como certas manifestações ou fenômenos podem ter uma relação problemática com os sistemas vigentes, em vários níveis e aspectos. Entendo que obra de Sade é o corpo estranho dentro do sistema filosófico, estético, social, moral; ainda que de alguma forma comprometido com tal sistema, e nutrindo-se dele, exorciza-o e o contesta da forma mais radical. À filosofia Iluminista, da qual é em parte devedor e professador, subtrai seus anseios utópicos, construindo uma utopia do Mal. A moral cristã teísta é sistematicamente debochada e demolida nos mais escandalosos rituais de sacrilégio. E por fim, do ideal estético apolíneo neoclassicista, atrelado ao pensamento cientificista e racionalista, Sade aproveita para compor os mais tortuosos e dionisíacos quadros da bestialidade, da irracionalidade, do desregramento na literatura.Grande parte das obras da literatura libertina do século XVIII tinha um projeto não só estético como principalmente filosófico atrelado ao Iluminismo, projeto esse que tinha como objetivo desprender-se do obscurantismo religioso, que confinava o corpo a uma espécie de apêndice da alma, um terrível instrumento do pecado. O Esclarecimento (Iluminismo) no campo das idéias e a Libertinagem na área do comportamento e da cultura fundiram-se, através da literatura, a fim libertar o corpo e a mente da rígida moral cristã. Não à toa que um dos maiores alvos (senão o maior) da literatura libertina dessa época foi justamente a Igreja, ridicularizada nas figuras de lúgubres abades, padres, sacristãos e demais autoridades da igreja católica.E a libertinagem é, como sabemos, uma afronta à moral cristã, que paradoxalmente nutre-se de sua existência para se afirmar enquanto moral. A sedução, a sensualidade e o erotismo, que são as portas de entrada para os desregramentos da libertinagem, são igualmente combatidos pelo cristianismo, e mais exatamente por São Paulo, que teria sido “mais cristão que o próprio Cristo” e cujas idéias contidas nas suas epístolas no Novo Testamento bíblico são o fundamento principal do cristianismo católico. Podar o desejo em sua base, e se possível eliminar do corpo suas saliências, tornou-se o desejo atávico castrativo dos profetas cristãos, de São Paulo a Santo Agostinho. A sublimação da carne e das manifestações insidiosas da libido, eis uma das bases do catolicismo, que atinge o auge de seu poder justamente nos meados do século XVII.As manifestações contrárias a essa moral repressora existiram concomitante a ela, mas quase sempre foram sufocadas através das terríveis inquisições. Porém, freqüentemente, em especial na literatura, os ideais da Igreja foram de alguma forma combatidos nas suas próprias bases por alguns seus ilustres membros. Em pleno Renascimento, François Rabelais, um abade ilustrado, escreve Gargantua e Pantagruel, uma obra monumental carnavalesca, licenciosa, que funde o mais “baixo” grotesco ao mais elevado latinismo clássico. Outro abade, o Prevost, publica uma história, Manon Lescault, que prenuncia a literatura amoroso-sentimental, entremeada de erotismo velado que reinará na literatura do século XIX. Riso, grostequerie, amor erótico-carnal são componentes que vão estar presentes na literatura libertina dos meados do século XVIII.Muito devido a essa convivência agônica entre os ideais ascéticos da religião e os ideais libertários e iluministas perceptíveis na arte e na filosofia, a arte libertina desse período deslizava entre a tensão barroca e a suposta leveza neoclássica; entre o riso sardônico e cínico, e a dor e a agonia; entre o helenismo caricatural, e o titanismo daimônico ancestral; entre o racionalismo e a contensão iluminista, e o desregramento e a efusão romântica. As obras literárias desse período, quase todas, principalmente as maiores, foram movidas pelo signo da ambivalência, do paradoxo, do inclassificável. Em Fausto, de Goethe, há idealismo, sensualismo, subjetivismo românticos como também a busca da forma ideal, do Belo helênico, puro, aristocrático, superior, clássico. É dentro justamente desses aparentes paradoxos que se inscreve a obra do Marquês de Sade. Em suas obras, o pensamento exposto através dos diálogos dos personagens como Dolmancé (de A filosofia de Alcova) expressa a vitória do livre pensamento, numa lógica peculiar contra o obscurantismo da fé religiosa, mas penetra ela mesma no obscuro e assutador universo da Natureza Profunda, titânica, além de todo entendimento. À parte a clareza dos diálogos de Filosofia na alcova, é nas descrições das orgias que melhor se percebe um aparente paradoxo. Nos rituais orgiásticos havia rígidos códigos comportamentais, numa liturgia estranha, mas não de todo incompreensível. Em 120 dias de Sodoma, por exemplo, há vários parágrafos que correspondem a leis que deveriam ser seguidas pelos libertinos. Temos nesse trecho a descrição minuciosa do ambiente (o castelo onde se realizavam as orgias), o que os membros da sociedade deveriam fazer, as proibições expressas. Atentemos especialmente ao primeiro período desse trecho, em como há a preocupação da enumeração dos elementos presentes no harém e da simetria existente na composição do quadro: “Dois haréns são destinados aos membros da sociedade, e suas construções formam as duas alas da casa principal. Um deles é composto por trezentos jovens dos sete aos vinte e cinco anos; o outro por um número equivalente de cinco aos vinte e um anos” . Podemos notar nesses detalhes importantes, que não fogem à observação e descrição do narrador, o senso plástico de equilíbrio racional o qual, conforme Adorno, se assemelha ao “sistema arquitetônico kantiano” e “às primeiras lojas maçônicas” e que anunciam “uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado”. Tal cenário parece ser um contraponto ao desregramento sensual nos atos sexuais.Estes, por sua vez, são descritos minuciosamente, com os mais escabrosos detalhes, numa linguagem em que não são polpadas quaisquer atrocidades, gozos, diálogos, e cada palavra-frase e/ou ato, carregados de ironia, sarcasmo, êxtase, crueldade, lubricidade, não fogem à descrição do narrador. (Não à toa que Michel Foucault afirma que foi na literatura de Sade que a palavra atingiu poder de transparência e crueza.)Tomemos como um dos numerosos exemplos dessa linguagem inexoravelmente transparente um trecho de 120 de Sodoma em que é narrada a admissão de Juliette na Sociedade dos Libertinos. Num primeiro momento, Juliette transcreve, em forma de diálogos dramáticos, o “inquérito” a que foi submetida pela presidente da Sociedade, respondendo às perguntas concernentes às idéias dela, Juliette, sobre seus “excessos de libertinagem”, religião, filhos, o papel da mulher etc. Suas respostas agradam à assembléia presente. Esse solene ritual de iniciação não interrompe a orgia que se realiza dentro do salão. Depois desse inquérito, é-lhe ordenada a leitura de uma espécie de estatuto da Sociedade denominado “Instruções às mulheres na Sociedade dos Amigos do Crime”, com doze parágrafos. Depois de sua leitura, Juliette então é introduzida por um libertino na orgia que se desenrolava à sua frente. Atentemos para o seguinte trecho:
UM LIBERTINO (conduzindo Juliette a um canapé)Ah!... pelo jeito você deve ser uma grande puta! Agora não há como voltar atrás... Você é tão piranha quanto aliciadora... Deixou-me contente e de pau duro.E dizendo isso o sacana me enfia na xoxota. Ele me fode durante uns quinze minutos, beija muito a minha boca, e depois, agarrado por outra mulher, abandona-me sem esporrar. Uma velha de sessenta anos vem a mim, e deitando-me novamente no canapé que eu acabara de deixar, masturba-me e se faz masturbar durante um bom tempo (...) Uma jovem me tira também esse libertino; ele me deixa para fodê-la, para fodê-la diante de meus olhos. Minha rival me acena; aproximo-me dela e a puta chupa-me: recebe a porra do homem que me roubara, e lhe dou a minha (...) O libertino que vem depois, e que igualmente reconheci ser eclesiástico, me mete na boca e goza. Uma jovem belíssima se aproxima para que eu a masturbe, o que faço de todo o coração. Um homem de aproximadamente quarenta anos pega-a, de nádegas para o ar, e a enraba; o libertino em seguida me faz o mesmo(...)
Reparemos que na descrição dessa cena não há floreios, eufemismos, nem demais recursos retóricos. Reina a objetividade e um certo rigor na construção das frases, em que prevalecem os verbos que indicam ação, e a ausência quase total de adjetivos. Esse estilo dará o tom no resto da narração e descrição dessa cena. Curioso é o fato de que, como que em consonância a essa contenção de estilo da narrativa, no ambiente da assembléia, onde as mais diversas taras e atos depravados eram manifestados, reina uma ordem insuspeita, numa contraposição algo irônica entre libertinagem e ordem social. Essa linguagem direta tem a ver com algo que não podemos nos esquecer: a literatura pornográfica de Sade tinha fins essencialmente pedagógicos, como de resto praticamente toda a literatura libertina desse período. Mas em Sade esse intento parece bem mais evidente, em obras A Filosofia na Alcova. Daí por que atos e palavras deviam ser ilustrativos, exemplares, e com uma finalidade mais ou menos objetivada, mesmo no gozo, na possessão orgíaca, na efetivação de crimes hediondos. Assim como na própria escrita que oscila entre a descrição dos atos movidos pelas paixões mais desvairadas e pelo êxtase (como em vários trechos de A Filosofia na Alcova em que são descritos os intercursos sexuais em grupo entre Eugênia, Madame de Saint-Angé, o Cavaleiro, Domancé e Augustin) e a narrativa objetiva e relativamente contida como no trecho acima transcrito, ou ainda na transcrição dos diálogos em que são expostas as idéias do próprio autor na fala dos personagens. Essa escrita, em vista em parte por seu caráter pedagógico em parte por sua afinidade com o racionalismo iluminista, pelo menos em boa parte das obras, não se perde em idéias obscuras ou difusas, nem em sentimentalismos, nem em floreios retóricos desnecessários. Isso porque o Marquês usa da linguagem como instrumento da racionalidade; é o que Pierre Klossovski chama de “linguagem logicamente estruturada”. De uma clareza ofuscante, essa linguagem põe a nu o obscuro universo das perversões, do ultraje, das paixões contidas nos celerados, como forma de denunciar as profundezas titânicas da natureza, compactuar com elas, celebrá-las, subjugá-las por intemédio do corpo lacerado e vilipendiado do outro e da renúncia a Deus. Mas Sade com seu estilo seco e “documental” faz mais do que expor a perversão. Através de seus escritos, o Marquês, de certa forma, perverte a própria literatura, com sua linguagem que aparentemente não dá muita margem para as reentrâncias semânticas da linguagem poética, seus meios-tons, sua obscuridade plurissignificativa. Faz assim o uso da linguagem como a langue sussuriana, retomada por Jakobson, que compõe um sistema mais ou menos fechado e cuja finalidade é a comunicação. O autor abdica o estilo (parole) apropriando-se da linguagem instrumental, e de outros estilos ou formas literárias (o diálogo dramático, o romance campestre, o folhetim) para compor uma obra que por sua idiossincrasia estético-filosófica, torna-se um estilo Nomear, como sabemos, é parte indissociável do processo de desmitologização da linguagem, esta que fica cada vez mais a serviço do esclarecimento e da racionalidade. A linguagem clara tem a ver então, em Sade, com a racionalidade e com o projeto de construção de um sistema filosófico, como também com o desvelamento do erótico, que é violentado pela palavra, pelo pensamento, pelo ato obsceno. A aproximação entre Kant e Sade feita por Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento justifica-se pelo anseio de ambos os filósofos, cada um a seu modo, edificarem o edifício da ratio sobre os escombros do mito, que por sua vez se vinga daquela quando a mesma torna-se um mito. A dessacralização do mito, do amor, da religião feita por Sade nutre-se das próprias forças dos mesmos. No tocante, por exemplo, à visão crítica de Juliette, que tenta de todas as formas destranscendetalizar o ato sexual, Adorno afirma que essa crítica “é dividida como o próprio esclarecimento: Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais e que põr o gozo físico ao alcance de todos”. A destrancendentalidade do gozo, proporcionada pela ratio sadiana, bane por conseqüência o Eros, que ainda é aliciadopela literatura licenciosa do século XVIII para com ele combater o obscurantismo castrador medieval cristão. Eis a radicalidade da obra de Sade, que ousa desnudar o deus-cupido o qual sempre, em maior ou menor medida, esteve a serviço da literatura, tão potencialmente erotizável e erotizante, enfim sedutora. Como não podia deixar de ser, não tardou a vir a resposta contrária a esse acinte contra Eros, e em última instância contra a literatura. Anti-Justine, de Retif de la Bretonne, tenta deliciosa e desesperadamente — cupidamente — aproximar de novo Eros e linguagem. A fruição do gozo desprovido da expropiração do corpo do outro e eivado de jocosidade, joie de vivre, ludicidade é o contraponto explícito empreendido por La Bretonne à obra de Sade. O incesto, a sodomia, o gozo intermitente, as orgias, estão todos no Anti-Justine, mas agora sem a violação, a laceração, a vitupério e a morte infringidas ao corpo do outro: o prazer, de ambos os lados, impera nessa obra, como também uma escrita deleitável, jovial, com constantes jogos de palavras que atestam o caráter lúdico dessa literatura, como podemos perceber neste trecho:Como conseqüência, pedi que a minha filha deixasse que sua moita fosse barbeada. Ela escondeu o rosto em meu peito. Traçodeamor derrubou-a de imediato num fodedor, a cona totalmente descoberta.
Acho que afinal é uma pena! — disse ele manipulando-a; a peruca é magnífica! Primeiro eu vou cortar com tesoura: colocaremos esse pêlo sedoso sob um vidro numa moldura dourada, será uma relíquia preciosa.Ele cortou. Em seguida, tirou de uma bela caixinha um sabonete perfumado com o qual ensaboou a coninha por um tempo. Como a operação excitasse Conchette, ela pediu-me para colocar meus lábios sobre sua boca. Dardejou-me com a língua durante todo o tempo em que a operação durou e, quando acabou de ser barbeada, foi lavada com água de rosas. Secaram-lhe as coxas com toalhas macias, e Ternolírio colocou o belo pêlo dos despojos sob o vidro amoldurado. Depois, a coninha sem barba foi exibida para ser admirada. Todos, sobretudo as moças, até a modesta Ternolírio que, segundo ela, só viera para ver e enrubescia com tudo, acharam-na tão apetitosa que pediram para beijá-la, e as moças precipitaram-se sobre ela. A bonita chapeleira colocou seus lábios vermelhos na cona barbeada, e sua língua entrou na fenda para excitar a volúpia. Rosamalva, que acabara de chegar, partiu para cima dela como uma endemoniada, afugentou a outra e enlevou com tanto ânimo a deusa que ambas emitiram. Chegou a vez dos homens: surgiram o conote descarregante e fizeram-no descarregar ainda mais... Quanto a mim, admirava a cina, as mãos mergulhadas nas tetinhas de Ternolírio, encantadoras, que a proprietária não ousava defender.
A obra de La Bretonne, insere-se, como também a de Sade, no contexto de uma literatura produzida em uma determinada época, o século XVIII, a qual remonta, segundo Marcel Moreau, “à primeira idade da humanidade lúbrica. A transgressão nela é alegria da mesma forma que a adoração. O vício resplandece, feliz por ser o vício, e não se envergonha em não poder se impedir de o ser. A luxúria é o justo extravasamento, o privilégio do excesso oposto à degradação da moderação. Esse fanatismo do coito excita o surgimento de indivíduos superiores, sacralizados por sua intemperança mesmo, apenas extraviados dos colossos mitológicos”. Mas, por outro lado, Anti-Justine, opõe-se diametralmente à obra sadeana porque na primeira há um contrato tácito de compartilhamento do prazer, que vai desaguar no riso, na jovialidade e freqüentemente na ternura, ou ainda no amor (o subtítulo da mesma é Os prazeres do Amor). A lubricidade dessa escrita que promete a fruição do gozo e do prazer tem pouco a ver com a obra de Sade, toda ela cerrada na lógica que decanta a vitória da racionalidade sobre o mito e a religião através do desregramento, do sacrilégio, e mais: do gozo instrumentalizado que não permite o compartilhamento, o jogo erótico, a saciedade, o gozo apático.A literatura licenciosa que a obra de La Bretonne representa muito bem é uma ode a eros onde são vertidos, como incensos e mirras, sêmen, suor, gozo (esporro) masculino e feminino. Por isso a libertinagem encontrada nessa literatura desperta os sentidos, delicia, dá prazer sexual, sensual e intelectual. Dá aos corpos seus sentidos de liberdade, de concupiscência, de comunhão com a natureza e com o mundo, no sentido mais profundo. E isso é erotismo. Uma libertinagem que faz-nos deliciar com as palavras, com os corpos, com os pensamentos os mais variados possíveis, dos mais leves aos mais densos. O prazer do texto barthiano, aqui, tem mais de um sentido. Prazer encharcado de libertinagem, inclusive com certo ideal libertário.Já na literatura de Sade há uma libertinagem que se adentra nos profundos pântanos dos desejos mais obscuros e negros, e deixa marcas indeléveis nos seus praticantes-transgressores. Agressiva, chocante, crua, obscena, violenta, essa escrita que parece ser tão apolínea em sua estrutura, é talvez a mais dionisíaca da história da literatura.A libertinagem sadeana é transgressão e perversão levadas às últimas conseqüências. Se a literatura e a arte em sua essência afastam-se do sistema social e político quando autônomas por não terem compromisso em retratar a realidade, ou o fazerem de forma tortuosa (do que Platão nunca lhes perdoou...), e se por sua vez a literatura licenciosa representa essa rebelião contra as normas morais vingentes de maneira deliberada, sistemática e pedagógica, a obra de Sade então vem a ser o ato supremo de deboche não só contra a religião, a moral, a sociedade, mas em certa medida também contra a própria literatura, o Iluminismo, a linguagem, o bom gosto, o erótico, a lógica, ainda que, a seu modo destes elementos se utilize, numa dialética irônica peculiar.
por jônathas santana

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